Muitas pessoas ainda se surpreendem:
— Xamanismo?! O que é isto? Serve para quê? Inúmeras também
têm sido as respostas... só que poucas revelam realmente o
conhecimento. A maior parte se escuda no mau uso da neurolingüística
para tentar segurar ou garantir adeptos...
— Xamanismo? Xamã? Por acaso isto é religião?
Muitos estudiosos sustentam que xamanismo é uma religião e
xamã, um sacerdote. É isso, mas não é só isso. Podemos admitir tratar-se
de uma religião se analisarmos a questão pelo aspecto morfológico da
palavra, originária do latim religare, ou seja, a religação do homem com
os aspectos do sagrado. É religião se observarmos que o xamã acredita e
se relaciona com forças sobrenaturais e elementais consideradas
criadoras do Universo e que estas forças são respeitadas, adoradas,
obedecidas e ainda invocadas nas cerimônias e rituais, quer sejam de
agradecimento, de iniciação ou de passagem e de cura...
— Mas o que é, afinal, xamanismo?
Entre outras coisas, é a maneira sagrada de ver a vida, de viver —
daí ser sua prática codificada como uma demonstração religiosa — é se
relacionar com o cosmo, o Planeta e todas as formas de vida que nele
existem, além de conviver harmonicamente com os outros níveis da
realidade não-comum (aqueles que estão além da experiência do mundo
físico).
Xamanismo é um estado de consciência, encontrado em todas as
épocas, desde o surgimento do primeiro homem sobre a face da Mãe
Terra, desenvolvido para compreender o meio ambiente e viver pacífica
e harmonicamente com ele. Nesta prática, o xamã esquece a questão de
dominar a natureza e procura entrar em perfeito estado de comunhão com
ela pelo contato que faz com as forças cósmicas e energias intrapsíquicas
que lhe possibilitam receber as mensagens dos povos mineral, vegetal,
elemental e animal, entre o qual se inclui o próprio ser humano. Aí
também ele consegue perceber a unidade sagrada da realidade que
permeia todas as outras dimensões além das que conhecemos e já
devidamente codificamos.
Por isto mesmo as práticas xamânicas são opostas ao centralismo
da cultura e do conhecimento ocidentais limitados por visões
reducionistas e pobres da natureza, do espírito, do sagrado e do próprio
homem.
Xamanismo também é definido como a medicina tradicional das
almas e o caminho que leva aos estados de consciência capazes de
alcançar o conhecimento e a sabedoria do mundo oculto atrás do mundo,
embora ainda haja quem encare este meio de transformação como uma
doença mental, um estado de alucinação ou de loucura, mesmo sabendo
o quanto cientistas renomados nos mais diversos ramos da ciência
ousam aventurar-se nas iniciações e práticas xamânicas em busca do elo
perdido.
A palavra xamã, originária da língua tunguska, Sibéria, significa
aquele que tem o conhecimento, o que conhece os segredos, o que detém o poder
de visitar os outros mundos. Quem faz ou é tudo isso senão os nossos
curandeiros, pajés, curadores e homens medicinas tão conhecidos ao
longo da história e que em passado ainda não muito distante, dentro das
comunidades tribais, eram os zeladores e cuidadores espirituais dos
nossos ancestrais?
Os dicionários — talvez para economizar palavras — não explicam
o que é ou quem é o xamã, e sobre xamanismo limitam-se a esclarecer
tratar-se de uma religião praticada "por certos povos do Norte da Ásia,
baseada na crença de que os espíritos maus ou bons são dirigidos pelos
xamãs (...) a religião de certas tribos indígenas norte-americanas e a dos
esquimós, de crença semelhante à do xamanismo". Bastante esclarecedor!
Desde o início do século XX, estudiosos e curiosos voltaram-se para
resgatar o conhecimento do qual falavam alguns remanescentes destas
culturas consideradas primitivas e começaram a perceber o seu valor e o
quanto o homem havia se desviado do conhecimento e do caminho
original. Dentre eles destacam-se o psicólogo e psicanalista Carl Gustav
Jung, o sociólogo Michael Harner (criador de institutos de pesquisas
xamânicas em alguns lugares do mundo), o antropólogo e escritor Carlos
Castañeda (ele próprio iniciado nos rituais da Tradição do povo Yaqui,
de Sonora, no México, pelo velho curandeiro Don Juan Mattus), Mircea
Eliade, especialista em culturas primitivas, o historiador Dee Brown,
entre outros.
Foram os livros de Harner e Castañeda que nos anos 70 abriram a
porta para as pessoas abandonarem a primeira visão de que o
xamanismo era uma forma primitiva de religião superada pelas culturas
hierarquizadas modernas e, a partir de então, irem buscar o
desenvolvimento pessoal e espiritual nas experiências diretas dos xamãs.
O que há no xamanismo para despertar o interesse desses
homens?A sabedoria, o conhecimento ancestral e sagrado inerente ao
homem, mas do qual ele se afastou ao fazer uma opção de retaliação com
a Vida e com ele próprio. Ao longo da caminhada que cumpre sobre a
Mãe Terra, o homem preteriu esconder-se nas sombras da noite para não
se ver e impedir de ser visto. Desta forma, tornou-se um desconhecido
dele mesmo. Ao raiar do sol, veste a sua fantasia e sai para brincar de
criador sem, contudo, atentar para o fato de que este distanciamento que
colocou entre os seus corpos e os demais integrantes da teia cósmica o
faz adoecer e adoecer e adoecer...
— Como se faz para ser xamã?
Na maioria das tradições, os xamãs já nascem feitos. Aos poucos
eles são descobertos com a revelação dos seus dons de cura ou de
sabedoria e do conhecimento sagrado. Inúmeros casos relatam sobre
experiências com doenças que vitimam pessoas que conseguem
sobreviver curando a si mesmas. São doenças raras, não diagnosticadas,
de origens desconhecidas ou até mesmo males considerados incuráveis.
O curador, via de regra, é aquele que em primeiro lugar curou a si e por
isso tem o poder e o dom de curar os outros.
Que recursos vai usar, é a medicina pessoal de cada um. Pode ser
pelas ervas, pelas pedras e cristais, pelas cores, pelos banhos, defumação
e fumigação, chás, infusões e beberagens...
Pode ser pelo resgate da alma, da recuperação do animal de poder,
da jornada, meditação...
Descoberto o dom, o iniciando passa a ser orientado por um ancião
ou curador mais velho que vai iniciá-lo em alguns rituais e caminhos. O
primeiro passo é aprender a acalmar, de modo consciente, a energia no
plano físico, pois o homem tem a tendência de se excitar, quando se trata
de servir à causa e propósitos divinos, não usufruindo o repouso
necessário para se recarregar e reabastecer da energia cósmica. Para
conseguir isto, o discípulo precisa aprender a entrar no silêncio que, na
linguagem de hoje, significa meditar.
Nenhum aprendiz conseguirá obter êxito no seu trabalho e
crescimento espiritual se diariamente não dedicar algum tempo para
isolar-se do mundo — no sentido xamânico, o mundo mental e
sentimental inerente ao ser humano — e entrar no Grande Silêncio. Aí
ele irá encontrar a nutrição necessária ao fortalecimento da sua
capacidade de resistir e superar as adversidades, o seu poder pessoal, e
de onde tirará a força e a possibilidade de expressar e manifestar o Bem
que lhe permitirá o acesso aos seus semelhantes com integridade,
dignidade e bondade.
Na maioria das tradições nativas americanas, a Busca da Visão é a
melhor forma de entrar no Cirande Silêncio. Este ritual também é
comumente chamado de Subir a Montanha, o que significa ascender a
consciência mais elevada para orar. Pela oração pode-se acessar o silêncio no
seu estado mais profundo interiormente, unindo duas das mais
importantes formas de cura.
Para silenciar é preciso se concentrar, algo difícil de conseguir na
nossa cultura ocidental, onde tudo age contra essa capacidade. Assim,
torna-se necessário aprender a ficar só consigo mesmo, sem ler, sem
ouvir rádio, assistir a televisão, sem fumar, sem beber e, em
determinados momentos, abster-se até da alimentação. O jejum facilita o
acesso ao eu interior e superior e à concentração. Ser capaz de se
concentrar é o mesmo que ser capaz de ficar a sós consigo.
O discípulo aprende, desta maneira, a ficar concentrado em tudo o
que faz, pois a atividade do momento presente é a única coisa que
importa, que merece a plena entrega. Neste sentido, é preciso ressalvar, é
importante que o coração esteja presente naquilo que se faz. Pode ser
simplesmente ouvir música, ou conversar com alguém, ou varrer uma
casa. Tais fatos assumem uma nova dimensão de realidade se de tem a
integral atenção da pessoa.
Usar a concentração, por exemplo, é evitar a conversação trivial, a
conversa não genuína. Estar concentrado em relação ao outro significa
ser capaz de ouvir. Há quem escute os outros, dê conselhos sem, contudo,
ouvir realmente, pois não põe o coração naquilo que está fazendo e,
conseqüentemente, não leva a sério o interlocutor. Assim não consegue
auxiliar ou concretizar um processo de cura.
Estar concentrado é viver integralmente o momento presente,
agora e aqui. E abandonar a pré-ocupação (não pensar naquilo ou na
coisa seguinte a ser feita enquanto está fazendo isto neste instante).
Ao adquirir este conhecimento, o discípulo inicia o processo de
aquisição da sabedoria e da revelação dos ensinamentos sagrados: a
iluminação e o amor divinos residem em seu coração; as partículas de
vida energeticamente capacitadas para promover a cura e restaurar a
perfeição habitam, desde o início, o seu corpo físico que possui o poder
de suprir toda e qualquer exigência e necessidade.
O aprendiz também é levado aos rituais de purificação. É preciso se
purificar das toxinas que poluem, além do seu físico, os seus corpos
emocional, mental e espiritual. As saunas, a fumigação, os banhos de
ervas, o jejum, tudo leva a essa experiência que é uma extensão do
aprendizado de entrar no Grande Silêncio.
O curador precisa saber dançar. Dançar é tornar-se maleável,
flexível, é aprender sobre o dom do respeito que é a disposição de olhar
duas vezes a mesma coisa e aceitar o resultado de toda e qualquer
situação a partir do entendimento de que tudo é o que pode ser.
Qualquer que seja o resultado é o que foi possível. Quando olhamos uma
segunda vez, mostramos que estamos dispostos a mudar de posição e
não ficamos aferrados a um ponto de vista particular, retidos em uma
crença ou indisponíveis para acumular os benefícios que as mudanças de
postura podem nos trazer.
A dança é considerada um sistema de fortalecimento e de
recuperação da alma. Quando se dança, atinge-se a essência daquilo que
se é e experimenta-se a união entre o espírito e o físico. A dança nos
permite fluir, buscar e expressar a criatividade, definir e refinar os
movimentos do corpo, criar a possibilidade da síntese e da integração
energética, e encontrar contentamento, harmonia e paz.
O xamã também aprende a ver. E ver vai além do olhar. É preciso
ver com todo o corpo, com todos os sentidos e sentimentos. E quando se
entra no Grande Silêncio, podemos ao mesmo tempo aprender a ver o
nosso lado escuro, nossas sombras que, em alguns casos, são os nossos
verdadeiros dons. Ver é muito mais que olhar e enxergar. É a capacidade
de sentir, sobretudo, o semelhante.
Enquanto é preparado, o aprendiz, homem ou mulher, vai
acumulando os seus talismãs e escudos de proteção, a exemplo da sacola
de medicina ou bolsa de talismãs. Tradicionalmente estas sacolas são
feitas pelos xamãs para dar proteção às pessoas comuns das suas
comunidades. No caso do iniciado, o responsável pela sua orientação
pode fazer-lhe a bolsa, mas ele pode escolher fazer a sua própria sacola
de cura (usada no pescoço do mesmo modo que no candomblé os iaôs,
ialorixás e babalorixás usam as guias dos santos ou patuás).
Diferente dos índios brasileiros, os americanos do Norte aceitam
pacificamente a existência das curadoras, muito respeitadas pelos seus
dons e poderes, em muitos casos superiores aos dos homens, e que se
distinguem por usarem bolsas de medicina feitas de pele de lontra. Este
animal detém um grande poder de cura e incorpora a energia feminina
em sua maior expressão, atuando indistintamente sobre homens e
mulheres, despertando sentimentos de doação e continência. Ela nos
conecta com a alegria, a brincadeira e a partilha enquanto nos faz
compreender que "a energia feminina traz a criação, a imaginação e a
arte, e nada melhor do que se conectar com estes sentimentos por
intermédio do amor", a principal medicina de cura.
Nas culturas xamânicas do Norte, o respeito pela mulher é
semelhante ao do candomblé, uma tradição matriarcal por excelência. A
Mulher Novilha de Búfalo Branco, por exemplo, é comparada a Jesus
Cristo, pelo que ambos simbolizam para o homem: o resgate da conexão
com o Criador e a compreensão do Sagrado.
A mulher tem uma participação destacada nas cerimônias dos
nativos norte-americanos, mesmo nos rituais essencialmente masculinos,
como a Dança do Sol. A mais velha anciã da tribo abre o círculo onde
está a árvore à qual serão amarrados os espetos que curam os dançarinos
e se senta em um lugar de honra.
Para quem se inicia na senda do xamanismo, os primeiros passos
consistem no encontro com o animal de poder, ou o seu espírito
verdadeiro, com o Guia Espiritual nesta vida/encarnação e o
reconhecimento de seu Local de Poder, para onde se desloca sempre que
precisa buscar orientação espiritual e cura.
Encontradas estas guianças, a pessoa é introduzida em alguns
rituais, como a Cerimônia da Purificação e a Busca da Visão. A intenção
agora é saber qual a real vocação e qual a medicina desta pessoa: ela vai
trabalhar com as ervas (banhos, infusões, chás. beberagens), será um
condutor de rituais, um cantador, um orador ou um contador de
histórias? O que é que ela vai mesmo exercer como intermediária entre
os mundos, as dimensões de cura? Quais serão os seus elementos
aliados?
Este processo é semelhante ao da confirmação do Orixá dono da
cabeça do iniciado na tradição afro-brasileira.
Além da bolsa de medicina, o xamã costuma ter pelo menos uma
pedra, cristal ou gema que lhe serve de suporte em rituais e cerimônias,
tambor de elementos naturais (madeira, couro, penas, contas, etc),
chocalhos ou maracás, cachimbo de madeira ou pedra (depende de sua
tradição), penas, geralmente de águia, gavião, coruja, beija-flor, conchas
ou abalones, para queimar ervas sagradas como a sálvia e capim doce, e
bastão de poder (com elementos representativos da medicina do xamã).
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