De que barro é feito um xamã?


Xamã, pajé, curador... homem ou mulher medicina... o que
transforma, possibilita a cura e é o detentor dos segredos do equilíbrio e
da harmonia, o zelador dos encantos e das forças da natureza.
A figura do curador xamânico — seja qual for o seu nome regional
— está presente em todas as civilizações e, acreditam os antropólogos,
surgiu com o próprio homem, desde a era paleolítica. Sua função
primordial era intermediar as relações entre os planos de energia,
trazendo ao homem comum as mensagens, bênçãos e possibilidades do
universo sagrado dos deuses.
Ao penetrar no mundo sutil, os pajés ancestrais escutaram a
natureza, aprenderam com as ervas, os cristais, as estrelas, os cheiros, as
cores, as faixas vibratórias, os animais. Como detentores dos segredos
puderam realizar a alquimia necessária à continuidade da espécie,
acompanhando-a afetuosamente em todo o seu processo evolutivo até os
dias atuais.
Com este conhecimento, os curadores atravessaram as eras,
adaptando-se aos movimentos sociais e políticos com a plena consciência
da impermanência das crenças e limitações humanas. Assim é que xamãs
surgiram no Oriente, na Sibéria, nas Américas e em todos os lugares
exerceram a sua força de transformação e cura, renascendo no mundo
moderno por meio dos movimentos de resgate da ecologia, da alquimia
e das medicinas naturais e vibracionais.
Indistintamente todas as civilizações viveram uma abordagem
xamânica da existência em suas histórias, e muitas culturas até hoje
preservam esses conhecimentos. Os ensinamentos xamânicos são a
herança comum dos que buscam o caminho para a sabedoria interior e a
harmonia entre povos e nações. O xamanismo, no dizer do físico francês
Patrick Drouot, "foi a primeira chave que permitiu ao ser humano
compreender seu meio ambiente e viver em harmonia com ele".
O teólogo Leonardo Boff constata que o xamanismo, ao contrário
do que defendem muitos estudiosos, não é um estágio primitivo de
religião, mas sim "um estado extremamente elaborado de consciência,
uma chave preciosa que os seres humanos desenvolveram para
compreender o meio ambiente e viver harmonicamente com ele. Mais
que dominar a natureza, o xamã procura entrar em comunhão com ela.
Percebe a unidade sagrada da realidade nas múltiplas dimensões que
vão além das três conhecidas pela nossa experiência empírica. Espírito e
realidade complexa se entrelaçam de tal maneira que formam um único
continuum".
Até a década de 60, os chamados adeptos da velha escola
psicanalítica consideravam o xamã como um doente mental. A partir dos
anos 70 começa a florescer o trabalho iniciado por Claude Lévi-Strauss e
Mircea Eliade, este uma das maiores autoridades em matéria de história
das religiões, e que resulta na apresentação do xamã como um criador de
ordem e especialista de ofícios que vão da medicina e da biologia,
passando pela farmacologia e a botânica, até a astrologia e liderança
religiosa.
"Longe de serem trapaceiros, charlatões ou ignorantes, os
curandeiros aborígines são homens de alta categoria, ou seja, homens que
alcançaram, na vida secreta, um grau muito mais elevado do que a maior
parte dos homens adultos — um passo que implica disciplina,
treinamento mental, coragem e perseverança... os vários poderes
psíquicos que lhes são atribuídos não devem ser de imediato repelidos
como simples magia primitiva e 'faz de conta', porque muitos deles se
especializaram no trabalho da mente humana, e na influência da mente
sobre o corpo e da mente sobre a mente...".
O texto do antropólogo australiano A. P. Elkin, em seu Aboriginal
Men of High Degree, sintetiza o que o xamanismo significa, enquanto
sinal, para que o moderno homem branco compreenda para quê (e por
quê) um sistema tão ancestral e antigo está se tornando atual e
contemporâneo no mundo ocidental.
Se xamanismo é, antes de tudo, um sistema de cura baseado na
integração perfeita com a natureza — que nutre e potencializa — e no
respeito à consciência de que o homem faz parte do Todo universal, este
é co-responsável e co-criador do caos ou da harmonia da vida e suas
manifestações sobre a humanidade. Isto é bom, pois assim o homem
pode transformar tudo — começando por si mesmo —, resgatando-se da
doença e da dor para caminhar em direção à felicidade verdadeira.
É importante compreender que xamanismo "é também uma grande
aventura mental e emocional" que envolve o curador e o paciente. O
essencial é fazer as pessoas sentirem "que elas não estão emocional e
espiritualmente sozinhas em sua luta contra a doença e a morte"... "zelo e
cura caminham juntos" (Michael Harner, in O Caminho do Xamã).
Vem da íntima conexão com a Terra, chamada de Mãe, a
possibilidade de transcender a realidade para compreendê-la e
transformá-la. O estreitamento das relações com aquele que simboliza a
própria cura (o xamã ou pajé) e a simplicidade é que fazem do
xamanismo uma possibilidade ampla para o homem contemporâneo
estressado e triste. É reconfortante saber que ele tem um aliado na
descida à consciência de sua própria sombra... e alguém para festejar e
receber o novo...
A principal função do xamã e servir de mediador entre os mundos
físico e espiritual, partindo-se da premissa da existência de um mundo
de espíritos dinâmicos e onipresentes. Tais espíritos e manifestações das
forças da natureza são invisíveis para a maioria das pessoas, mas não
para o xamã, que é um paranormal. Praticante da cura e adivinhação, ele
preside rituais e celebrações e tem suas aptidões reconhecidas, cultivadas
e preservadas porque dão acesso à magia.
O abismo cultural entre as tradições xamânicas e a visão cartesiana
clássica é imenso. A perspectiva xamânica vai muito além dos limites da
psiquiatria, psicologia e da compreensão de um mundo ordenado,
estável e determinado que, hoje, é contrariada pelas descobertas
revolucionárias da física quântica, o estudo das estruturas voláteis, a
holografia, as experiências de expansão da consciência (muitas das quais
feitas a partir do uso de substâncias psicoativas, algumas delas utilizadas
desde a antigüidade pelos xamãs de variadas culturas, sobretudo da
América Latina, a começar do México). Tudo isso tem levado cientistas
sociais e pesquisadores a proporem uma revisão total dos conceitos
formulados sobre a natureza humana e o universo.
As práticas xamânicas de cura obedecem a uma espécie de
cronologia flexível, independentemente da cultura ou grupo étnico à
qual respondam. Estes estágios não se excluem e, muitas vezes, se
fundem assumindo aspectos transculturais comuns aos pajés, curadores
e até mesmo terapeutas vibracionais que hoje buscam nesta forma
expansível de consciência uma poderosa ferramenta de auxílio às suas
medicinas.
A primeira etapa é a da preparação e purificação: curador e
paciente submetem-se a rituais de limpeza áurica, aprontando-se para a
cerimônia de cura, e a fumigação com ervas e raízes pode se estender às
pessoas presentes e ao ambiente ou terreno ritual. Geralmente os nativos
incluem a purificação por meio do suor, banhos e abluções com águas
especiais e ervas. Algumas culturas indicam a abstenção de alimentos
ligados à cerimônia ou que venham dificultar a transcendência dos
estados comuns de consciência, e aparecem tabus quanto à prática sexual
em determinados dias anteriores e posteriores ao ritual.
A segunda etapa é a da invocação e apresentação das imagens
simbólicas que servirão de âncora aos seres divinos e sobrenaturais,
aliados e protetores do xamã e daquele que o procura. São estimulados
os sentidos, principalmente do paladar, olfato e tato, e os símbolos são
apresentados com dramaticidade e especial deferência, sejam eles
instrumentos como o tambor e o chocalho, bastões de poder, ícones,
imagens ou preces e cânticos.
Assim que são invocados, os seres sagrados investem estes
símbolos com energia e poder, bem como o curandeiro e o paciente,
preparando o caminho para que o "doente" sinta-se convidado e
estimulado a modificar os padrões vibratórios responsáveis pelo seu
desequilíbrio, doença ou possessão.
O terceiro estágio, quando o curador ou o paciente — e até mesmo
ambos — se identificam com os guias e seres invocados ou com a
manifestação física da doença, difere de grupo a grupo. Enquanto alguns
incluem a "incorporação" de tais entidades, a exemplo dos afrobrasileiros,
com seus Orixás, e os Pankararu (tribo de Pernambuco,
Brasil), com seus Encantados, outros demonstram a influência concreta
de animais e seres sobrenaturais, mas não se desvinculam de sua
consciência comum, fazendo uma ponte entre o físico e o espiritual pela
canalização sutil das energias. Seja de que forma for, nesta etapa do
processo o curador está investido da autoridade que lhe confere o
convívio íntimo com seus guias, protetores, aliados e animais de poder e
da conseqüente proteção que eles conferem à cerimônia e seus
executores.
Este é um momento muito delicado. Se o curador perder o controle
das forças que invocou sofrerá conseqüências extensivas ao paciente. Por
isso o grau de reconhecimento de um xamã ou pajé pela comunidade
está estreitamente ligado ao manejo que ele apresenta das forças naturais
com as quais está lidando.
Em seguida o xamã reconhece — e tem reconhecido pelo grupo —
que está aberto um portal de transformação e transmutação que propicia
a cura. "O curador usa o poder extraordinário que agora tem aos olhos
do paciente e dos expectadores para obter os resultados desejados. Vence
a batalha, extermina a doença, expulsa o mal, contra-ataca o feitiço ou
recupera a alma. Simbolicamente transformado, o paciente acredita que a
verdadeira recuperação da saúde e da harmonia irão em breve
acontecer" diz Donald Sandner em Os Navajos e o Processo de Cura.
O quinto patamar deste processo envolve a liberação das forças
simbólicas invocadas. Precisam surgir procedimentos que tragam o
curador, o paciente e o círculo de pessoas presentes ao estado comum de
consciência, também chamado de "estado normal". Depois de ter
vivenciado o poder transformador do símbolo, o paciente deve afastar-se
dele para poder estar presente no aqui e agora, enraizar-se na vida
prática do cotidiano e levar adiante sua proposta e serviço pessoal. Esta
volta à realidade comum é alcançada por meio de agradecimentos,
cânticos, preces e orações, banhos de ervas ou especiais em rio, cachoeira
ou mar, seguidos, em alguns casos, de um repouso temporário para que
os corpos sutis daquele que vivenciou o ritual de cura se encaixem e
readquiram o equilíbrio e a harmonia.
Também no fechamento deste ciclo os xamãs têm orientações
comuns: cabe ao paciente aproveitar um momento tão especial de
encontro consigo mesmo em sua forma mais poderosa de harmonia,
saúde e paz para transcender os padrões e bloqueios de energia que
abriram caminho às doenças, possessões ou dores emocionais. Caso os
comportamentos originais não sejam modificados com a conscientização
de sua existência, exercícios, preces e/ou atitudes novas e mais saudáveis
perante a vida, o paciente arrisca-se a desenvolver outras dores e
patologias, até que possa dar o grande salto quântico da mudança
interna.
A palavra xamã é de origem tunguska (povo nativo da Sibéria),
definindo uma pessoa que pode transitar em outros mundos, entrar em
estados alterados de consciência e acessar seus guias e aliados (minerais,
vegetais, animais e espirituais).
O xamã ou pajé, neste conceito, diferencia-se do mago, bruxo ou
médium africano ou espírita: ele se conecta com seus aliados e se
transporta — através da porta da consciência — para os planos
espirituais da natureza onde realiza o processo de cura que necessita
acionar. Já os feiticeiros e médiuns citados invocam esses seres para os
seus rituais incorporando-os e assumindo a sua presença no "mundo
comum".
O xamã, desde os tempos mais antigos e remotos, não escolhe ser
xamã como profissão. Dizem os nativos que ele obedece a um forte
chamado interno, geralmente durante uma doença grave ou acidente,
com uma visão, sonho ou transe espontâneo. A partir daí, o xamã pode
descobrir que traz em si a semente da cura e da capacidade de estimular
no outro a vontade de se desapegar da doença e da dor.
Por meio de experiências iniciáticas e um aprendizado árduo o
futuro curandeiro experimenta a morte e o renascimento em si mesmo,
penetra em outras dimensões, aprende a sair delas e voltar ao estado
comum de consciência, é treinado na linguagem arquetípica dos animais,
plantas, ervas, minerais e gemas e encontra seus guias e guardiões,
mestres que possuem a chave que dá acesso aos processos de
transmutação e cura. Cabe a ele, enquanto aprendiz, abrir as portas da
sua percepção.
Por intermédio de estudos antropológicos estão sendo resgatados
os conhecimentos xamânicos mais antigos. Eles chegam às
universidades, consultórios, workshops e palestras e têm servido de
suporte e gatilho para uma nova consciência em relação à natureza e do
próprio homem.

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